Viés de retrospectiva e administração tributária

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Um artigo publicado por André Folloni, Pamela Varaschin Prates e Paula Cardozo Stemberg na última edição do periódico Economic Analysis of Law Review1 analisou os efeitos do “hindsight bias”, ou viés de retrospectiva, sobre as decisões da Fazenda Pública. O artigo destacou os efeitos negativos desse viés comportamental em lançamentos que são realizados pelos contribuintes e estão sujeitos a homologação posterior pela Administração Pública.

 

O viés de retrospectiva ocorre quando avaliamos uma decisão a partir de informações que não estavam disponíveis no momento da tomada de decisão. Esse viés se manifesta de forma mais clara quando surge uma assimetria informacional significativa entre um agente incumbido de tomar uma decisão prospectiva e outro agente a quem cabe avaliar essa decisão, em um momento posterior e de forma retrospectiva. O resultado da avaliação retrospectiva tenderá a ser enviesado, pois seres humanos possuem uma propensão natural a embasar suas avaliações sobre um conjunto inicial de informações percebidas como um dado auto evidente (ancoragem). Assim sendo, o agente incumbido de avaliar uma decisão tomada por outro no passado provavelmente se valerá de informações que só poderiam ser obtidas em um momento posterior à decisão, tomando como certos resultados que antes eram imprevisíveis.

 

Após conceituar o viés de retrospectiva a partir de trabalhos da economia comportamental, o artigo destaca que as decisões da Fazenda Pública a respeito de tributos lançados por homologação estão particularmente sujeitas a esse viés. Isso ocorre porque, nos termos do artigo 150, § 4º do Código Tributário Nacional, a Fazenda pode avaliar a decisão tomada pelo contribuinte até 5 anos após a ocorrência do fato gerador. Quando há uma inovação legislativa relevante, quando surge um novo tipo de atividade econômica que levanta dúvidas a respeito da correta identificação dos valores devidos ou da forma de lançamento do tributo, o contribuinte deverá tomar todas as decisões a respeito do lançamento sob condições de incerteza.

 

No entanto, quando a Fazenda Pública avalia o lançamento realizado, cinco anos depois, é possível que algumas das variáveis que eram incertas para o contribuinte já tenham sido esclarecidas pelo decurso do tempo, ou que soluções doutrinárias e jurisprudenciais já tenham elucidado pontos que antes estavam em aberto. Nesse caso, o viés de retrospectiva sugere que a avaliação realizada pela Fazenda tenderá a se basear em informações que não estavam disponíveis para o contribuinte. Ora, a responsabilização do contribuinte e a eventual aplicação de penalidades em decorrência de erros no lançamento seriam medidas essencialmente injustas nos casos em que o contribuinte buscou, de boa-fé, cumprir as normas tributárias, mas não pôde fazê-lo porque não tinha acesso às informações posteriormente utilizadas pela Fazenda para avaliar a sua conduta.

 

Diante desse problema, o artigo apresenta alguns métodos que vêm sendo desenvolvidos e discutidos em outros países, e também por organizações internacionais, como a OCDE, para lidar com o viés da retrospectiva em distintas áreas do Direito. Uma solução possível é o chamado “debiasing by law”, ou seja, a adoção de políticas públicas ou posicionamentos jurisprudenciais que busquem endereçar diretamente o problema e evitá-lo. Uma solução frequentemente empregada consiste na vedação expressa à utilização de informações que não estavam disponíveis ou eram incertas no momento da decisão. No caso analisado pelo artigo, semelhante solução implicaria que quaisquer provas ou argumentos utilizados pela Fazenda baseados em fatos ou entendimentos posteriores ao lançamento deveriam ser desconsiderados. Outra alternativa seria impor ao avaliador retrospectivo a obrigação de considerar expressamente, em sua avaliação, outros cenários plausíveis, ou seja, forçar-se a não tomar os fatos ocorridos após a tomada de decisão como certos e previsíveis. 

 

Esses mecanismos de “debiasing”, no entanto, têm eficácia reconhecidamente limitada. Tentam impor restrições ao processo de avaliação para evitar resultados enviesados, mas vieses cognitivos muitas vezes operam de forma inconsciente e, por isso, nem sempre podem ser endereçados diretamente. Diante desse quadro, uma outra alternativa seria adotar regras mais gerais que atuem em sentido contrário ao resultado enviesado. No caso analisado, podem ser utilizadas regras que favoreçam a posição do contribuinte e limitem a imposição de penalidades, tendo em vista que a assimetria informacional atua em seu desfavor. 

 

O artigo publicado na Economic Analysis of Law Review sugere então um conjunto de ações para lidar com o problema levantado. Em primeiro lugar, os autores advogam por uma interpretação extensiva do art. 112 do Código Tributário Nacional, que prevê a necessidade de interpretar a legislação tributária de modo favorável ao contribuinte em certas hipóteses de dúvidas, relacionadas às circunstâncias materiais do caso, à extensão de eventual penalidade ou autoria e imputabilidade de fatos. Os autores argumentam que um cenário de incerteza jurídica ou factual à época do lançamento deveria ser suficiente para caracterizar as hipóteses de dúvida previstas no referido artigo, afirmando que: 

 

“Se, na época da decisão, por exemplo, a legislação era nova, havia pouca doutrina, ou sua interpretação doutrinária era controvertida, não havia extensa e uniforme jurisprudência administrativa ou judicial, e assim por diante, a dúvida pode ser considerada existente no passado, autorizando a que a decisão presente afaste a penalidade.” 2

 

Os autores sugerem também outras medidas destinadas a atenuar o risco para o contribuinte, nos casos em que o recolhimento do tributo é considerado ausente ou insuficiente. Atualmente, os valores devidos referentes aos 5 anos em que o recolhimento foi inadequado devem ser pagos em cota única. Trata-se de uma solução extremamente onerosa para o contribuinte. Os autores argumentam que tal modelo de cobrança pode ser considerado apropriado para os casos em que houve opção consciente e informada pelo não pagamento de valores devidos, mas que certamente não é justo nos casos em que o contribuinte agiu de boa-fé e não recolheu os montantes corretos porque não dispunha de informações suficientes no momento do lançamento.

 

Os autores propõem, então, duas possíveis soluções para esses casos. A primeira consiste no estabelecimento de regras de parcelamento automático que permitam ao contribuinte, em tais casos, arcar com os valores devidos sem que isso impacte de forma súbita as suas atividades econômicas. A segunda consiste na redução dos encargos cobrados pela Fazenda, de forma a não contemplar majorações referentes à aplicação de entendimentos doutrinários e jurisprudenciais que não eram conhecidos e previsíveis para o contribuinte no momento do lançamento.

 

O debate proposto pelo artigo é extremamente atual e dialoga com questões que vêm adquirindo crescente importância no cenário internacional em razão do fecundo campo aberto pela aplicação da economia comportamental às relações jurídicas.

 

Lucas Thevenard, 13 de janeiro de 2021

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1. FOLLONI, André; PRATES, Pamela Varaschin; STEMBERG, Paula Tatyane Cardozo. O viés de retrospectiva na economia comportamental: como atenuar seus efeitos na administração tributária. Economic Analysis of Law Review, v. 11, n. 2, p. 159–172, 2020.

2. Idem, p. 168.

* Clique aqui para acessar o texto do artigo objeto desta resenha, no site da Economic Analysis of Law Review.